domingo, 10 de maio de 2020

Carta de amor a uma desconhecida

A ti…

Amar-te? Para quê? Para me espetares uma adaga no fundo das vértebras?
E de novo, parece que cá estou o mesmo estúpido, romântico incurável, que não aprende… num exercício de escrever-te uma carta de amor. Nem sei quem és… portanto não posso nem consigo cuspir fora este coraçanito de cartão encardido e chamuscado das passadas labaredas que por pouco o incandesceram, embora a temperaturas de fusão.
Amar? Sinto-me incapaz de momento. Vontade? é uma faca de dois legumes e uma refeição de um gumo. Mas ias gostar de ver… se valorizasses… como até aqui me tem falhado em pessoas… as loucuras de amor que desempenho e o retorno que não tenho. Se tu visses, valorizasses, não os desprezasses… ias ver… eu sou raro, prometo. Quando apaixonado… sabes lá. Faço com cada loucura… por amor escrevi cartas, ofereci asas, cometi crimes, voei dois terços do planeta, dediquei o meu espírito, cedi o que me era valioso, entreguei o meu coração e vísceras, comecei a cantar, compus canções de eterno amor… verdade. De vez em quando dizem que sou assustador. Acho que é por ser uma pessoa intensa. Sou intenso, sou… mas sou um frágil e mole coração. Tenho muito para dar e por alguma razão não têm querido receber. Não têm querido perceber que é honesto, que é verdadeiro. Sou mal interpretado. Acho eu… não percebo bem.
Eu raramente me apaixono… é muito difícil para mim, sou muito picuínhas sei lá… mas quando é, porra…! E acabo sempre por me foder.
Tenho crescido tanto. A dor tem-me dado com cada lição. É duro, mas acho que é isto que é ser adulto. É suportar a dor e atravessar o chão em brasa. Quão irónico, quão absurdo que é isto a existência, a existência para a maturidade. Quão absurda a realidade… que nos ensina como uma velha freira-professora-salazarista de palmatória na mão. Nunca uma palmatória ensinou uma criança, nunca. Mas que puta de vida que é assim que ensina adultos a serem íntegros e maduros e sábios e dignos… através de cicatrizes. Absurdo. Absurdo… Dukkha.
Amor. Quão belo seria se tu me amasses como eu me disponho a te amar… Quão belo seria se tu conseguisses reciprocar-me este tsunami incandescente que te submerge e toma a tua forma.
Quão magnífico seria guerrearmos piroclastos à explosão do meu coração… quão magnífico se o teu também explodisse…
Amor… temo nunca te encontrar. Estou cheio de cicatrizes no peito e nos olhos… mas haverá sempre lava, o meu peito é magma, a minha traqueia coral, a minha boca oceano.
Não te procuro mais. Pode ser que te encontre.

Com amor,
André